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Artigo / Entrevista
Ética profissional | Regulação da mídia

Relatório Leveson. Um documento com lugar na história

Reproduzido do sítio Observatório da Imprensa. Por Carlos Eduardo Lins da Silva em 04/12/2012 na edição 723

O relatório da comissão presidida pelo juiz Brian Leveson sobre a indústria do jornalismo na Grã-Bretanha e suas relações com o Estado e a sociedade é um dos mais importantes documentos sobre a nossa atividade da história recente.

Só é comparável ao da Comissão Hutchins, nos EUA, que em 1947 recomendou com ênfase que os veículos jornalísticos se impusessem um compromisso de responsabilidade social equivalente à importância que tinham na vida social na época; e ao da Royal Commission on the Press, que em 1949 determinou que fosse criado um Press Council para lidar com reclamações contra a imprensa em casos de difamação, invasão de privacidade e desrespeito a ordens judiciais.

Nem Leveson nem seus dois predecessores nos dois lados do Atlântico advogaram que o Estado fosse imbuído com qualquer tipo de controle à atividade jornalística.

Leveson é claríssimo ao dizer que o organismo que ele julga ideal para lidar com os erros da imprensa deve ser independente e autorregulatório, e que para assegurar que de fato assim seja, seu “presidente e integrantes devem ser escolhidos de forma genuinamente aberta, transparente e independente, sem nenhuma influência da indústria ou do governo”.

Leveson enfaticamente afirma que esta entidade cuja criação sugere “não [negrito original no documento] terá o poder de prevenir a publicação de nenhum material, de nenhuma pessoa, em nenhum tempo”.

Ou seja: ele nega de modo peremptório qualquer possibilidade de censura prévia. Quem abusar dos direitos da liberdade de imprensa deve responder por seus abusos após a publicação de seja lá o que for.

As punições que prevê são publicação de correções e de pedidos de desculpas e sanções financeiras limitadas em relação ao faturamento do veículo e de no máximo 1 milhão de libras esterlinas.

Décadas de esculacho

Em suma: o relatório Leveson mantém os princípios básicos de garantia da liberdade de expressão e de imprensa que fazem da Grã-Bretanha e dos EUA os grandes exemplos de democracia que são.

Isso deve ficar claríssimo para que não se venha a usar no Brasil e em outros países o exemplo de Leveson para reivindicar formas ostensivas ou disfarçadas de controle estatal ou judicial da imprensa. Leveson não dá sustentação a nenhuma dessas teses.

Se Leveson parece radical em sua crítica aos padrões de comportamento de parte da imprensa britânica é porque lá a realidade tanto do jornalismo quanto da sociedade, assim como da relação entre esta e aquele, são muito diversas das daqui.

Lá, dois corpos de autorregulamentação – o Press Council e o Press Complaints Committee – já existiram e demonstraram sua ineficiência, devido ao corporativismo de jornalistas e empresários de comunicação que imperou sobre ambos e os tornou inócuos.

Aqui, nenhum organismo deste tipo jamais existiu. A imprensa brasileira ainda está na idade da pedra em termos de autorregulamentação.

Como em diversos outros episódios de sua história (como quando a TV se tornou hegemônica antes de a leitura de veículos impressos ter se tornado universal), a imprensa brasileira terá de dar saltos na história.

Ela não poderá passar pelo processo de entidades de autorregulação perfunctórias, irrelevantes. Não poderá gastar 60 ou 70 anos, como fez a britânica, com conselhos que só fazem jogo de cena. Se passar por isso, corre o risco de ou simplesmente desaparecer ou se tornar totalmente irrelevante.

A necessidade de no Brasil se tomar a iniciativa de constituir algum tipo de autocontrole eficaz é urgente. Só neste século, por exemplo, começa a se firmar no país uma “imprensa popular” (expressão provavelmente equivocada para designar o que na Inglaterra se chama de “tabloid press”, ou seja, veículos que concentram seu conteúdo na cobertura de notícias de crimes, sobre a vida de celebridades e de assuntos referentes a sexo). Tal gênero jornalístico tende a ser com mais frequência o que mais perto se aproxima dos limites éticos, pela própria natureza dos temas com que lida.

É muito provável que, com a ascensão desse tipo de jornais, aumentem por aqui as reclamações contra comportamentos como o do célebre News of the World, que detonou a crise que desaguou na criação da Comissão Leveson e que fez com que se atiçasse a fúria de suas vítimas contra a imprensa em geral, após muitas décadas de abuso dos tabloides na Grã-Bretanha. A indústria e a sociedade precisam estar preparadas para lidar melhor no Brasil com isso do que os britânicos o fizeram por muito tempo.

Missão cumprida

Não se pode deixar de mencionar que o escândalo do News of the World não veio à tona por causa da ação de qualquer aparelho de Estado. Não foi a polícia, nem a Justiça, nem o Parlamento, nem o Executivo que apurou e denunciou as escutas ilegais de telefone feitas pelo jornal. Ao contrário, muitos agentes desses aparelhos estavam mancomunados com a empresa de Rupert Murdoch que editava o News of the World e ajudavam a acobertar os seus crimes.

Quem tornou possível as agora exemplares e merecidas punições que diversos jornalistas estão recebendo (embora o maior responsável, o próprio Murdoch, ainda esteja livre e sossegado) foi outro jornal, The Guardian. Ou seja, foi a liberdade de imprensa, não o controle estatal sobre ela, quem possibilitou o desmascaramento dos malfeitos da própria imprensa.

O relatório Leveson é uma grande contribuição para o debate e o melhor entendimento do que é o jornalismo e como ele deve se autorregular para poder cumprir com mais eficácia a sua missão de manter e aperfeiçoar a democracia em qualquer sociedade. Não poderá nunca, exceto por má-fé, ser utilizado em favor de qualquer argumentação em defesa do cerceamento da liberdade de imprensa pelo Estado de forma direta ou interposta.

Merece ser lido no detalhe por jornalistas, empresários de comunicação, políticos e cidadãos de qualquer sociedade que seja ou aspire ser verdadeiramente democrática.

Ele não está imune a equívocos nem é completo. Deixa passar ao largo, por exemplo, toda a intrincadíssima questão do jornalismo e seus sucedâneos na internet e nas redes sociais, por si só um assunto ainda mais complexo do que o das mídias tradicionais.

Mas cumpre a missão que a sociedade britânica deu à comissão de analisar os fatos referentes ao trabalho da imprensa no país e sugerir formas de torná-lo mais responsável e eficaz.

Publicado em 4 de Dezembro de 2012
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